Receita pra casa de avó

A casa da avó, para ser uma digna casa de avó, deve ostentar, antes de tudo, amplas janelas abertas para o mundo, de maneira que possa correr livremente pelos seus cômodos e corredores a luminosa manhã com seu alarido de pássaros e ventanias.

As cortinas, por sua vez, deverão estar meticulosamente escancaradas, mas sempre dispostas a servir de esconderijo para as crianças em suas possíveis brincadeiras de pique e esconde. Na casa da avó, a própria brincadeira das crianças, deverá ser tomada com grave seriedade pelos adultos, como um sagrado ritual de passagem, o qual não podemos, sob pretexto algum, violar.

Convém deixa-los soltos, animando os longos corredores da casa como se fosse um rio, como sopro novo enchendo de vida os pulmões da casa, a comer biscoitos aos montes, sem culpa ou pecado, a subir e descer da mangueira como macacos, e comer manga verde com sal até que fiquem tristes de não ter mais jeito. Deixemos, portanto, que brinquem, que ralem os joelhos, que brinquem até não poderem mais de tamanha exaustão; quando, enfim, se sentarão, ofegantes e mais velhos, à sombra da mangueira, a contar suas vantagens e peripécias. Não convém, portanto, impor limites, tudo isso não durará mais que dois meses, tempo em que definitivamente se esgotam as férias na casa da avó.

Mas recomenda-se que na casa da avó exista entre as tias, uma tia chata, uma tia chata é sempre necessário. Essa tia deve se achar a dona da casa. Deverá reclamar constantemente do barulho das crianças e da bagunça que elas estão aprontando pela casa toda. Além de chata a tia tem que ser exagerada. Não importa se as crianças fizeram bagunça apenas no quarto ou na cozinha, ela tem que dizer que foi na casa toda. E mais: deve dizer que as crianças “estão deixando a casa inteira de pernas para o ar”.

Convém à tia chata, sob a pena de perder o cargo, jamais deixar de usar essa frase, e repeti-la com um ar de quem a profere pela primeira vez. E que, entre essas crianças, exista uma que se ponha de repente a sorrir da graça dessa frase, descobrindo através da sua aparente antipatia, uma insuspeitada razão para sorrir: afinal, uma casa com pernas para o ar é realmente muito engraçada. Mas a tia não acha, nem deve achar engraçada. E, antes, muito aborrecida, deve perguntar à sobrinha o motivo para tanto riso, pois ela mesma não vê graça nenhuma.

A casa da avó deve abrigar nos seus poucos metros quadrados a infinitude de todo o universo. Deve abrigar desde as menores fofocas até os maiores dramas humanos. Embora os dramas sejam sempre vividos nela com aquela parcimoniosa disposição dos que tiram férias de si mesmo. A casa da avó deve bastar por si: nada no mundo pode existir que não seja encontrado dentro dela.

Não pode faltar, sob hipótese alguma, a lírica existência de uma prima mais moça, anunciando, pela sinuosidade do seu pijama, os primeiros rumores de sua adolescência.  Essa prima deverá ser vaidosa, tomar vários banhos num só dia, pentear vagarosamente seus longos cabelos negros, trocar de roupa sozinha num quarto trancado.  Mas deverá existir também um buraco de fechadura, por onde estarão três ou quatro meninos espiando, estudando, compenetrados, o desabrochar da beleza feminina.

E em cada canto sombrio da casa deve se abrigar algum mistério. À noite, quando todas as luzes se apagam, os cômodos e corredores devem ficar povoados de fantasmas, lamentáveis almas penadas, ridículas em suas roupas de velório, que toparão com algum menino no longo corredor escuro.

A casa da avó deve ostentar nas paredes da sala de estar antigas molduras, velhas fotografias de família. E não pode faltar, de maneira alguma, aquela foto da época que os avós se casaram: o avô de terno, gravata e bigode; a avó com cara de noiva recém-casada. Não pode ser outra cara: tem que ser cara de noiva recém-casada. A foto deve estar um tanto quanto amarelada e meio corroída pelas traças. E com ser tão velha, deverá infundir em todos que a contemplam um inexplicável friozinho na barriga. Ou qualquer sensação que não se explica com palavras.

Mas a casa da avó, assim como a própria vida, deve ter também suas pequenas dores de cabeça: como a briga das crianças pela latinha de ervilha, as goteiras na hora da chuva, as antipatias da tia chata, a quebra de alguns copos e tigelas, os pernilongos na madrugada, a disputas pelo ventilador, pela rede, pela cadeira do vovô, a demora absurda no banheiro e outros graves problemas que ameaçam a harmonia geral.

Até porque, embora muitas vezes pareça, a casa da avó ainda não é o Paraíso que Deus prometeu.

***

O Admirável Mundo Novo Baiano

No céu azul, azul
Forma-se uma nova raça
Saindo dos prédios para as praças
Uma nova raça

Na década de 70, embalado talvez pelos bons ventos da Era de Aquário, pela atmosfera de uma filosofia de vida mais sintonizada com a natureza e uma sensibilidade voltada para o crescimento espiritual, sem dispensar as experiências comportamentais mais radicais, Luiz Galvão, o poeta que traduziu em palavras a filosofia de toda uma geração, escreveu esses versos. A música – Colégio de Aplicação – do primeiro álbum dos Novos Baianos.

Essa geração – que Galvão soube tão bem traduzir – percebia o céu azul para além das telas de tevê – não se permitia ficar em casa, trancados num prédio; ocupavam as praças, levavam seus pandeiros, violões e guitarras e faziam sua música, desbaratinavam e subvertiam o estabelecido. Era uma nova raça que nascia para reinventar o mundo caduco – mundo de duas guerras mundiais, de ditaduras militares, demarcado em fronteiras. Era preciso reinventá-lo. Reinventá-lo e reinventar-se. E lá estavam, os meninos que cresceram jogando bola nos interiores e subúrbios do Brasil, fazendo música e driblando a caretice armada dos milicos, tudo isso com irreverência e samba no pé.

Eram e são os Novos Baianos essa nova raça que veio dá vida nova às velhas praças, descendo no samba, subindo de rock, tinindo trincando num chorinho. Eram moleques do Brasil, que pediam e davam esmola, corações que se deixavam guiar pela lei natural dos encontros – é bonito vê-los, todos unidos, formando um belo time onde entram todas as raças sintonizadas pelo amor em fazer música e jogar futebol.

Digo isso porque – se tem alguma coisa boa que produziu o século XIX, foi essa tal de Sétima Arte, o Cinema. Porque no ano de 1973, quando os Novos Baianos ainda moravam no agora famoso sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá – Solano Ribeiro registrou com muita sensibilidade como era a vida diária e a filosofia da rapaziada no Cantinho do Vovô através do documentário “Novos Baianos Futebol Clube”.

Nesse documentário – que hoje é acessado pela internet por gente de todo canto do mundo – assistimos a cenas como as de Dadi, Jorginho e Pepeu ainda rapazotes dando rolé à toa de bicicleta pelo sítio, um monte de criança pra cima e pra baixo, nos colos, soltos a correr, tomando banho nos baldes. Buchinha debaixo do chuveiro, Baby dando banho em menino, a galera fazendo mutirão pra preparar o almoço, saindo com todo o time pra jogar bola. Entre eles Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Gato Félix, Charles Negrita e Bola Moraes– todos na caçamba de um caminhão, sob um céu ensolarado de fazer sorrir até o mais triste dos homens, tendo ainda de quebra o Bilhete para Didi como trilha sonora de fundo. Tudo isso o documentário de Solano nos presenteia de bandeja, numa linguagem despojada de qualquer artificialismo.

A certa altura do documentário, o registro de mais um depoimento onde Luiz Galvão revela quem eram os Novos Baianos, sua filosofia.

– Os Novos Baianos é um cara que não admitiu deixar de ser menino. (…). Novos Baianos é um cara alegre, que acredita que a vida só está começando…

Essa é talvez a sabedoria que o poeta Galvão e os Novos Baianos deixaram para as novas gerações, a novas raças precisam continuamente se reinventar, se opor frontalmente aos modos de vida estabelecidos. Essa nova raça precisa soprar vida nova nesse mundo caduco – tudo isso para que esse mundo, ainda afeito às guerras, fronteiras e desmatamentos, se torne, finalmente, um Admirável Mundo Novo Baiano!

Hello world!

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